quinta-feira, 1 de julho de 2010

SINGULLARIDADES



Vai o animal no campo: ele é o campo como o 
capim, que é o campo se dando para que haja 
sempre boi e campo; que campo e boi é o boi 
andar no campo e comer do sempre novo chão. 
Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem 
em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha 
a erva a crescer em redor do seu corpo, para 
o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se 
o boi, é o campo que se ergue em suas patas 
para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a 
fabricação de flores que se erguerão do pó dos 
ossos que a chuva lavará,
                                       quando for tempo.

trecho de Carta do Morto Pobre, Ferreira Gullar






O INFERNO

começa pelo olho, mas em breve é tudo. Uma
poeira que caia ou rebenta nas superfícies. Se
tivesse a certeza que ao fim destas palavras
meu corpo rolasse fulminado, eu faria delas 
o que elas devem ser, eu as conduziria a sua
última ignição, eu concluiria o ciclo de seu
tempo, levaria ao fim o impulso inicial estagnado
nesta aridez utilitária em cujo púcaro as forças
se destróem. Ou não faria: uma
vileza inata a meu ser trai em seu fulcro todo
movimento para fora de mim: porque este é
um tempo meu, e eu sou a fome e o alimento
de meu cansaço: e eu sou esse cansaço comendo
meu peito.Porque eu sou só o clarão dessa
carnificina, o halo desse espetáculo da idéia.

trecho de O Inferno de Ferreira Gullar





Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos seus jardins
eu devo ter ouvido 
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade geograficamente desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente 
do capim
junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro da usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou

trecho de Uma Fotografia Aérea de Ferreira Gullar

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