quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

O ATIRADOR DE DARDOS


Quando atingi uma certa idade e a melancolia de que o tempo agora entraria em contagem regressiva e que a morte, este animal covarde e traiçoeiro, viesse me abocanhar em silêncio, passei por um período de catarse diárias até que o hiato entre as distâncias do que tinha feito antes se tornaram cada vez mais esparsas e um dia me interessei por dardos. 

Num catálogo, presenteado pelo samorim das Índias, encontrei um modelo muito antigo que logo  me agradou e então liguei para a loja para encomendá-lo. Não demorou até que o entregador aparecesse na minha porta com a encomenda em uma caixa de papelão cru semelhante às embalagens de pizza. Passei a ocupar meus dias com este ofício. 

Instalei o alvo no terraço pra escapar do mofo que habitava na casa. No princípio praticava sozinho, mas depois vieram os pássaros e a presença deles me causou certo aborrecimento a ponto de me fazer retornar ao interior da casa.

Aperfeiçoei-me rapidamente ao equilíbrio dos dardos e logo me cansava a monotonia quando resolvi praticar alvejando as flores. Especialmente as vermelhas e as amarelas. Acertava-lhes exatamente no centro evitando assim qualquer dor e oferecendo-lhes uma morte súbita. Consumi todas as papoulas e girassóis até que comecei a invadir os jardins alheios para alvejar outros espécimes. Tornei-me um terrorista procurado pelas donas de casa desassossegadas nos seus matrimônios infelizes.  

Havia atingido tamanha perfeição que comecei a praticar em moscas até que estas se tornaram escassas na minha casa. Então, parei de pôr o lixo na rua com intuito de atraí-las. A prática deu certo durante algum tempo, mas o mau cheiro que exalava começou a me pertubar profundamente.

Um dia, voltando ao terraço, percebi que um equilibrista num monociclo fazendo malabáries com peixes me observava. Intuitivamente fizemos amizade. Ele me convidou para acompanhá-lo numa turnê mundial e eu nem pensei duas vezes. Arrumei meu poucos pertences na velha mala de crocodilo - herança do meu avô, o Imperador Petrúcio III - e partimos.

Fizemos apresentações inesquecíveis para o rei do Tombasquistão, para a princesa negra de Gálaga, para o supremo-sacerdote da corte de Anghastira no alto dos montes nevados da fronteira com o Cratzmequistão. Meu amigo encantava as platéias rodopiando no mocociclo e atirando para cima um cardume de robalos que rodopiavam no ar e se transformavam em anchovas. Recebi o título de grão-mor da tribo dos pigmeus de Bwangar pela minha perícia com os dardos a ponto do imperador me convidar a fazer parte da tribo, convite educadamente recusado por conta do refinado paladar canibal dos pigmeus.

Mas o inverno rigoroso obrigou-me a voltar dos confins da Conchinchina. Rompi meu noivado com a princesa Tai-Mo Sing, e dizem (fiquei sabendo mais tarde) que após minha partida ela chorou tanto que suas lágrimas criaram o lago Rosa na cidade perdida de Sairuan. Mas a partida tornaria-se inevitável. Sentindo uma dor terrível no joelho fui a um médico que retirou da minha perna um dos meus dardos que estavam desaparecidos.

A monotonia bate em minha porta todo dia. Tentando evitá-la me disfarço de coisas invisíveis e vou cada vez mais a lugares improváveis como se fosse possível fugir do inevitável escrito do destino. Mas eu tento. Agora, por exemplo, me distraio passando minhas férias de verão em Magrathea ajudando Slartibartfast a fazer  fiordes na Noruega, embora ele seja um escultor medíocre e feliz.

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