sexta-feira, 13 de agosto de 2010

ASSOMBRAÇÕES




Sexta-feira, 13. Que nem hoje!

Felizário nunca havia atirado de espingarda. Também nunca havia visto uma assombração. Naquela noite viveria as duas experiências de uma só vez. Um barulho, um vulto na mata, o rugido da cartucheira espalhou-se feito um trovão de tempestade pela noite e o coice da arma atirou-o uns tres metros pra trás por cima de uma moita de cansação no pé de um tucunzeiro; e houve no ar uma mistura de cheiros de almíscar e cravo de defunto, uma profusão de ruídos esgarçantes como se um animal tivesse sido rasgado no meio. Naquele instante uma rasga-mortalha passou rasante por cima de sua cabeça mirando-lhe nos olhos. Foi sua última lembrança antes de apagar.

Tres semanas após este incidente, Felizário ainda guardava as sequelas daquela noite: um espinho de tucum cravou e quebrou o olho no meio dos seus lombos. Doía toda vez que ele mexia as costas. Enquanto tomava uma dose de pinga na bodega da vila naquela quentura de meidia, um desconhecido de terno surgiu de repente ao seu lado e disse:

-Atirando no que não vê?

Felizário levou um susto e quase cai do tamborete. 

-Sai pra lá siô... Me dando um susto, home...Eu lhe conheço?

-Conhece e não conhece.

-Pois se apresente de novo.

-Nem preciso. Mas olhe bem pra mim que você vai se lembrar. 

Felizário olhou nos olhos do desconhecido e foi como se tivesse visto sua alma arder no meio dos infernos. 
Antes que pudesse expressar uma palavra, o desconhecido apontou-lhe o dedo e disse:

-Vim buscar sua alma por conta de uma dívida de seu bisavô comigo, aqui nestas terras.

-Moço, se a dívida é dele, cobre dele.

-Deixe de ser besta homem. Dívida de parente com o diabo alguém da famíla tem que pagar. E o escolhido foi você. Lhe espero hoje à noitinha, na beira da lagoa.

-E eu vou pagar com quê criatura?

-Com uma coisinha besta que você não gastou um tostão pra comprar...Sua alma!

Após estas palavras, a criatura se afastou e sumiu no meio duma ventania que subitamente desceu pela ruas revirando as coisas, as roupas nos varais e as panelas dos jiraus dos casebres ali do lado.

Felizário chegou no riacho ao anoitecer. Não teve que esperar muito tempo. Logo ouviu uma rufada de asas e quando se virou a criatura havia se materializado a cerca de 30 metros na sua frente. Usava o mesmo terno preto.

Não pensou duas vezes puxou a espingarda, mas o diabo deu um rodopio no ar e Felizário o viu se transformar na criatura mais horripilante que jamais tinha visto: os dentes mal cabendo na boca, os olhos parecendo dois carvões em brasa, os chifres de bode e uma pele escamosa que nem da velha Juritinga. O bicho bufou e soltou uma labareda de fogo pelas ventas que se não fosse o salto de capoeirista que Felizário deu pro lado ele teria torrado que nem a casa de Zé Roela quando ele esqueceu a chaleira de café acesa no fogo.

E então começou o escarcéu de balas no rumo do diabo que revidava com carambelas e rojões de fogo e  enxofre que agora saíam tanto da boca quanto do rabo e quem via de longe achava que era festa de São João que tinha vindo mais cedo. Era fogo prum lado, bala pro outro, um troar relinchante de pavor nunca visto naquelas redondezas. E quando tudo já parecia perdido, a última bala benzida e marinada três dias no alho, o tiro misericordioso resvalou no rabo ossudo da criatura e penetrou diretamente no seu ânus.

Não durou três segundos. O diabo aquietou-se espantado como que acometido por uma diarréia aguda antes de explodir em milhares de pedacinhos luminescentes confundindo-se com os vaga-lumes da noite pra alegria dos  sapos que saíram da lagoa para um banquete farto no meio daquele festim dos infernos.

2 comentários:

rayssa gon disse...

demais. demais.

é o que? guimarães rosa?

Jorge Jansen disse...

Valeu Rayssa a comparação! Fez bem pro ego, mas o texto é da pessoa que vos escreve. De vez enquando umas coisinhas autorais...