sexta-feira, 7 de maio de 2010

ESPELHOS

Acordei com espelhos trespassados no corpo feito setas de relâmpagos acesos no dia no aço fremente habitando o nervo o esmalte azul da carne a íris incandescente refletindo as paredes a mesma angústia do sol sobre as laranjeiras lá fora numa explosão de cheiros ácidos derramando nos quintais o amadurecimento de seus frutos. Os espelhos não causam dor atrapalham é verdade qualquer vertigem súbita quando dobro o corpo para calçar os sapatos empoeirados as meias antes juntar um botão da camisa um botão de flor quase escondido no chão do quarto quase uma roseira nascendo nos meus cabelos quase um labareda no chão do quarto quase um estilhaço no espelho quando me abaixo e sinto seu gosto úmido na garganta o gosto da matéria de que é feito o objeto e ameaço um grito que se oculta  no reflexo e volta silencioso para o corpo. Lá dentro os intestinos dobrados em naúseas que me alimentam enquanto preparo café calmamente enquanto lá fora na rua o dia se derrama em horas na menina que caminha para a escola no homem de camisa xadrez lendo o jornal na banca da esquina no pedestre que atravessa a faixa correndo atrasado para sua morte lenta no trabalho mas nenhum deles sabe de mim dentro do prédio na janela do décimo segundo andar um vulto na mesa sentado cortando uma fatia de pão enquanto espera o café esfriar mais um pouco enquanto espera o corpo acostumar-se a esta frágil armadura de espelhos oculta dentro de mim.

2 comentários:

marcos assis disse...

foda! retrato típico - amargurante - de um dia comum e urbano.
ressaca de vidro

Jorge Jansen disse...

É camarada vc disse tudo!!!